terça-feira, 18 de setembro de 2007

As "comadres"


Diz o povo, talvez "escaldado", zangam-se as comadres sabem-se as verdades. Daqui se depreende que não é conveniente a proximidade nem a excessiva confiança com elas. É habitual vê-las ao fim da tarde, juntas, nas esplanadas, nos adros de igreja, nas soleiras das portas, desenferrujando as línguas e dando asas à imaginação. As "comadres" são como as cerejas, umas puxam as outras e não existem sozinhas. Pior que duas "comadres", fazendo "corte e costura" em alguém que passa , só mesmo três "comadres" competindo na novidade e na má língua. Em qualquer caso faz parte do folclore social encontrar estes seres "alinhavando" a vida de terceiros com "fio moral", tecendo "camisas de arame" a alguém que segundo elas se desnorteou. Não adianta pensar que este tipo de personagem está condenado a desaparecer devido ao viver urbano. Mesmo na cidade as "cuscas", abreviatura de coscuvilheiras, continuarão a existir e a controlar as idas e vindas do comum dos mortais.
Elas sabem tudo. Os serviços secretos deveriam ter um contacto permanente com estas agentes à paisana, esta polícia moral de saias, saberiam por certo coisas em primeira mão e aprenderiam a "nobre arte de espreitar". O problema são os constantes aumentos, as distorções, as conjecturas no vazio. Deduzir a partir de pouco é um exercício só para "profissionais " de nariz e olho apurado. A "comadre" não nasceu assim, teve de treinar muito. As "comadres" são mais poderosas e mais visíveis no meio pequeno, a aldeia, a vila, a pequena cidade. Estes pequenos núcleos reúnem as melhores condições ambientais para a reprodução desta espécie. E não são necessárias grandes condições de "trabalho" para as ver felizes, desancando no seu semelhante, "metendo água" quando nem tudo se viu ou se soube. As "comadres" não fazem jornalismo, nem ciência, quando não sabem inventam.
As suas críticas, o seu escárnio e maldizer são feitos em círculos pequenos, sempre condimentados com cobardia e uma pitada de hipocrisia. Depois servido à mesa do chá com as amigas e passado de boca em boca em forma de "bolinho" envenenado. È esta a sina de quem nada mais tem que fazer. A sua existência é de um tédio absoluto, passam a vida aquecendo ao sol e fazendo "tricot" na vida alheia. Língua afiada e mão na malha, eis o lema de quem tece histórias que não assina por baixo. Alguém que passa ou alguém de quem se lembram, são motivos suficientes para pôr a cabeça, de dois tempos, a funcionar. E depois é mais fácil viver a vida dos outros que saber lidar com o que se passa lá em casa. E uma "comadre" que se preze sabe dissimular as verdadeiras amarguras que lhe corroem a alma. Com o mal alheio posso eu bem, diz com ar de gente sábia.

(Texto original de Carlos Adaixo in http://www.freipedro.pt/tb/130700/opin1.htm)


Qualquer semelhança com virtualidades não é certamente coincidência.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Estou cansado


Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


Álvaro de Campos

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Súplica


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga